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Uma reflexão sobre a definição e uso da classificação de alimentos como “ultraprocessados” – Por Fernanda de Oliveira Martins

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Atualizado em: 24/11/2020

A classificação NOVA

Fonte da Imagem: Unsplash

A classificação NOVA (1), que classifica alimentos pelo grau de processamento, tem ganhado atenção com a recente discussão em relação ao guia alimentar brasileiro. O principal ponto de polêmica parece ser o uso do termo ‘ultraprocessado’ e há menções de que o termo é “inadequado” (2), sendo “mais enganoso do que explicativo” (3).

“A classificação NOVA é muito ampla e genérica. Alimentos que nada têm a ver entre si coexistem nesta classificação dentro da mesma categoria” (4).

 

A Classificação NOVA é um sistema de classificação de alimentos criado por uma equipe de pesquisadores liderada pelo professor Carlos Monteiro, da Universidade de São Paulo. A NOVA categoriza os produtos alimentícios pela “extensão” e “finalidade” do processamento, em quatro categorias: alimentos minimamente processados; ingredientes culinários processados; alimentos processados; e alimentos ultraprocessados. Esta classificação é apresentada como uma maneira de medir os impactos dos alimentos na saúde humana, e traz a recomendação de evitar o consumo de alimentos do grupo de ‘ultraprocessados’. A NOVA também é promovida como uma alternativa à orientação alimentar tradicional, baseada em grupos de alimentos, aprovada por governos como o “MyPlate” dos Estados Unidos, o “Eatwell plate” do Reino Unido ou o “Food Pagoda” da China (5).

 

“Se o termo ‘ultraprocessado’ fosse um ‘código’ para alimentos pobres em nutrientes e densos em calorias (como bebidas com açúcar, doces e salgadinhos), então eu poderia concordar [que estes alimentos estejam relacionados com obesidade e outras doenças crônicas]. No entanto, uma série de alimentos considerados como ultraprocessados são aqueles que devem ser escolhidos se consumidos nas quantidades recomendadas” (6).

 

Definição de ‘alimentos ultraprocessados’

 

A principal crítica em relação à classificação NOVA parece ser a definição de alimentos ‘ultra-processados’. É importante notar que essa definição vem mudando ao longo dos anos, o que aumenta a polêmica em relação à sua validade científica.

A primeira vez que o termo aparece na literatura científica é em 2009 (7), em um comentário na Revista Public Health Nutrition. Nesta publicação, Monteiro afirma que, “em relação à saúde e nutrição, a questão não é o alimento nem os nutrientes, mas o processamento”. Monteiro usa ainda o termo “alimento ultraprocessado premium” para diferenciar aqueles com menores quantidades de gordura, açúcar e sal e maiores quantidades de micronutrientes. Mas destaca que, “com poucas exceções, produtos ultraprocessados ‘premium’ também não são saudáveis em si” (7).

Poucos anos depois, em 2012, Monteiro e colaboradores publicaram outro comentário (8) no qual afirmam que “embora comestíveis e geralmente muito saborosos, produtos ultraprocessados não são alimentos de verdade” e que “não são feitos de alimentos”. Os aditivos são destacados como os ingredientes mais abundantes numericamente nos produtos ultraprocessados (8). Listas de alimentos aparecem na publicação, como exemplos de cada um dos 3 grupos apresentados. Dentre os produtos ultraprocessados estão “pão”, “conservas (geleia)”, “sobremesas”, “sucos de frutas e leites açucarados”.

Uma nova publicação é feita pelo  grupo do Monteiro em 2016, a classificação NOVA “em sua forma atual e revisada”, que “classifica todos os alimentos e produtos alimentícios em quatro grupos claramente distintos, especificando o tipo de processamento empregado na sua produção e a finalidade subjacente a este processamento”, de acordo com os autores (1). Assim como na publicação anterior (8), este documento também traz exemplos de alimentos incluídos em cada grupo. Mas desta vez, “pães” e “geleias” aparecem como alimentos processados, e não mais como ultraprocessados. Os aditivos, que antes eram exclusivos dos alimentos ultraprocessados, passam a poder estar presentes em alimentos processados. Na lista de alimentos ultraprocessados aparece “pães de forma, de hot-dog ou de hambúrguer”, em diferenciação dos “pães” considerados como processados.

Talvez a falta de clareza da definição apresentada até então tenha motivado o grupo a publicar um outro comentário em 2019, novamente na revista Public Health Nutrition (9), intitulado “Alimentos ultraprocessados: o que são e como identificá-los”. Nessa publicação, os autores especificam que ingredientes como açúcar, óleos, gorduras e sal podem estar presentes em alimentos processados e ultraprocessados. Aditivos que prolongam a duração do produto podem ser usados em alimentos dos grupos ingredientes culinários, alimentos processados e ultraprocessados. Ou seja, nenhum destes ingredientes mencionados é exclusivo ao grupo de alimentos ultraprocessados. Os autores então indicam que “ingredientes que são característicos de alimentos ultraprocessados podem ser divididos em substâncias alimentares de nenhum ou raro uso culinário e classes de aditivos cuja função é tornar o produto final palatável ou, muitas vezes, hiper palatável (“aditivos cosméticos”)”. Vale ressaltar que o termo “aditivo cosmético” não é reconhecido por órgãos regulatórios como ANVISA, EFSA e FDA.

Mesmo após esta quarta publicação, a definição de alimentos ultraprocessados parece ainda ser controversa e com importantes limitações (4).

 

Muitos utilizam o termo ‘ultraprocessado’ para definir os alimentos que contêm aditivos. Mas esta não é a classificação correta. De acordo com os autores da classificação NOVA, aditivos também podem estar presentes em alimentos classificados como ‘processados’ e inclusive em ‘ingredientes culinários’ (4).

 

Alguns autores afirmam que a classificação NOVA é “qualitativa e muito reducionista”, deixando espaço para critérios subjetivos que levam à disparidade entre as classificações (por exemplo, pão e iogurte saborizado ou com frutas são considerados ultraprocessados em alguns estudos científicos e não em outros) (4).

A presença de definições diferentes bem como a falta de clareza e objetividade, que levam a interpretações diferentes, faz com que diferentes alimentos sejam classificados como ultraprocessados em diferentes estudos. Isso dificulta comparação e interpretação de resultados de pesquisas que utilizam a classificação NOVA (4). Você classificaria o pão produzido em uma padaria como processado ou ultraprocessado? E se a padaria utilizar um pre-mix para preparação do pão, você mudaria sua classificação? Se você estivesse participando de uma pesquisa, saberia dizer se o pão que comprou na padaria foi feito com ou sem uso de aditivos ou pre-mix?

 

Outro ponto que geralmente levanta discussão em relação à definição de alimentos ultraprocessados é a quantidade de ingredientes. O Guia Alimentar da População Brasileira (10), indica que “uma forma prática de distinguir alimentos ultraprocessados de alimentos processados é consultar a lista de ingredientes (…). Um número elevado de ingredientes (frequentemente cinco ou mais) e, sobretudo, a presença de ingredientes com nomes pouco familiares e não usados em preparações culinárias indicam que o produto pertence à categoria de alimentos ultraprocessados” (10). Tal agrupamento, por número de ingredientes, tem sido muito criticada por profissionais da área de ciência dos alimentos, já que o número de ingredientes estaria relacionado à receita e não à saudabilidade de um produto. Preparações industriais, mas também as caseiras, podem ter ou não um alto número de ingredientes (11).

 

O guia alimentar do Canadá utiliza o termo “produtos altamente processados” (12). Apesar da similaridade com o termo ‘ultraprocessado’, sua definição é bem diferente. O guia canadense afirma que “produtos altamente processados” são alimentos e bebidas processados ou preparados que contribuem para o excesso de sódio, açúcares livres ou gordura saturada quando consumidos regularmente.

Uma das principais afirmações do guia canadense é que “alimentos e bebidas processados ou preparados que contribuem para o excesso de sódio, açúcares livres ou gordura saturada prejudicam a alimentação saudável e não devem ser consumidos regularmente”.

Portanto, o termo utilizado pelo guia canadense difere substancialmente do utilizado pelo guia brasileiro. Alimentos caseiros com alto teor de sódio, açúcar e gordura saturada entram na categoria de produtos ‘altamente processados’, no Canadá. Já no caso do Brasil, estes alimentos não entram na categoria de alimentos ‘ultraprocessados’ e, portanto, não há recomendação de evitar o consumo. Neste sentido, o guia brasileiro sugere que alimentos preparados, mesmo aqueles com alto conteúdo de gordura, sal e açúcar, devem ser preferíveis aos alimentos industrializados, mesmo que os últimos contenham menores quantidades destes nutrientes críticos.

 

O Comitê Científico da Agência Espanhola de Segurança Alimentar e Nutricional (AESAN), do Governo da Espanha, concluiu que “tentar relacionar o grau de processamento com a saúde, não pode ser feito independentemente da composição do alimento, uma vez que foi demonstrado que o grau ou tipo de processamento e a quantidade de ingredientes presentes em um alimento definido como ultraprocessado não se correlacionam com sua qualidade nutricional” (13).

 

Alimentos categorizados como ultraprocessados ​​na classificação NOVA nem sempre são nutricionalmente pobres (4).

O conceito de alimentos ‘ultraprocessados’ agrupa alimentos com perfis nutricionais diferentes, enquanto os alimentos com perfis nutricionais semelhantes podem estar em categorias diferentes (5) (14).

Por exemplo, brownies caseiros (feitos de alimentos minimamente processados e ingredientes culinários processados) e brownies feitos em fábricas (classificado como ultraprocessado) são colocados em categorias diferentes, apesar de poderem ter valores nutricionais semelhantes. Por outro lado, alimentos muito diferentes em valor nutricional e papel na alimentação são incluídos no mesmo grupo de alimentos ultraprocessados, como pão integral industrializado, leite de soja fortificado sem açúcar, batatas fritas embaladas e balas de goma. Muitos dos alimentos neste grupo são nutritivos e podem contribuir para dietas saudáveis, de acordo com vários especialistas (5) (14) (4).

A Figura 1 mostra alguns alimentos classificados como ‘processados’ e ‘ultraprocessados’.

 

Muitas pessoas têm a percepção de que alimentos ‘ultraprocessados’ são aqueles com alto teor de açúcar, gordura e sal. Mas esta é uma ideia errada.

“Um alimento rico em açúcar, gorduras e sal é um alimento rico em gorduras, açúcar e sal e não um ‘alimento ultraprocessado’ (2).

 

Figura 1. Exemplos de produtos e sua classificação de acordo com a NOVA. (15) Fonte: Desrotulando, aplicativo de ‘food score’ no Brasil que classifica os alimentos de acordo com a classificação NOVA, e tem aval do grupo do NUPENS – grupo dos autores da classificação.

 

“É importante não associar o termo ultraprocessado a alimentos de baixa qualidade nutricional, pois isso não depende apenas da intensidade ou complexidade do processamento, mas da composição do alimento final.” (13)

 

Outro ponto que levanta críticas em relação à classificação NOVA é a inclusão, na definição de alimentos ultraprocessados, de elementos como “acessibilidade, conveniência, palatabilidade e marca” (1) (7) (9). Pesquisadores criticam o fato de tais elementos serem usados para inferir saudabilidade de alimentos (5) (14). Devemos caracterizar um alimento acessível como não-saudável? Ou deveríamos tornar alimentos saudáveis mais acessíveis? A acessibilidade não parece, então, ser um elemento discriminatório de saudabilidade. E em relação ao uso de ‘marcas’? No Brasil existem frutas e legumes com marcas conhecidas, inclusive com caracteres infantis, mas isso não as tornam ultraprocessadas.

 

Vale a pena destacar que os críticos da classificação NOVA não são contrários à recomendação de ter frutas, verduras e legumes como base de uma alimentação saudável; nem fazem apologia a alimentos industrializados (11). As críticas são direcionadas às definições de alimentos processados e ultraprocessados usadas na classificação NOVA, que fazem referência a uso de ingredientes, a supostas quantidades elevadas de alguns nutrientes, e de conveniência, palatabilidade, publicidade, etc; elementos estes, que não se relacionam com o processo.

 

Talvez seja interessante um melhor esclarecimento e distinção dos 3 elementos implícitos na classificação NOVA: 1. Processo (cozimento, resfriamento, desidratação, pasteurização etc), 2. Ingrediente (conservantes, emulsificantes, corantes, etc), e 3. Nutriente (quantidades de açúcar, sódio, gordura, fibras, etc).

 

 

A classificação NOVA se propõe a classificar alimentos de acordo com seu grau de processamento. Porém, utiliza definições que incluem elementos relacionados a ingredientes, nutrientes, conveniência, palatabilidade, entre outros, mas não o processamento em si.

 

O ‘processamento de alimentos’ é uma ferramenta, e não um resultado. Como ferramenta, o processamento de alimentos pode ser usado de diferentes formas, com diferentes objetivos e gerando diferentes resultados. Os seres humanos processam alimentos há milênios, produzindo alimentos palatáveis (processamento de grãos), seguros (fermentação, pasteurização), nutritivos e que duram mais tempo (desidratação, que também preserva o valor nutricional). Hoje, Impressoras 3D, imprimem alimentos que podem ser mais sustentáveis e nutritivos e que podem atender necessidades especiais de nutrição e textura (alimentos pastosos para idosos, por exemplo).

 

 

O não consumo de ‘alimentos ultraprocessados’ não garante uma alimentação saudável

 

O principal objetivo de orientações alimentares é promover uma alimentação saudável. Vale ressaltar que não há definição de ‘alimento saudável’. A Organização mundial de saúde define apenas critérios para uma ‘alimentação saudável’ (16). Quando tentamos aplicar critérios de alimentação para um produto, geramos um erro. Por exemplo, uma dieta saudável tem, por definição, menos de 30% do valor energético provenientes de gorduras (16). Se aplicarmos este limite a um azeite de oliva, que tem toda sua energia proveniente de gordura, chegaríamos à conclusão de que o azeite não é um alimento saudável, o que não faz sentido. O azeite, apesar de ser 100% gordura, quando faz parte de uma dieta que seja composta também por outros macronutrientes pode ser parte de uma alimentação saudável. Como a dieta é composta de vários produtos, é difícil definir limites nutricionais para um produto individual.

Orientações em relação a alimentos individuais são geralmente acompanhadas de orientação em relação à quantidade e frequência, por exemplo, ‘favorecer o consumo de cereais integrais’ e ‘consumir menores quantidades e com menor frequência, alimentos com alta quantidade de gordura saturada’.

 

A recomendação de ‘evitar o consumo de alimentos ultraprocessados’, presente no guia alimentar da população brasileira, parece não ser necessariamente efetiva para garantir uma alimentação saudável (6). Dietas que não apresentavam alimentos ultraprocessados excederam limites de açúcares adicionados, sódio e densidade energética (17). No Brasil, o quintil da população com menor consumo de alimentos ultraprocessados (2% do total de energia vindos deste tipo de alimento) excedia a recomendação de consumo de sódio em 60% e não alcançava a recomendação de ingestão de fibra (18). Por outro lado, dietas vegetarianas e veganas, que podem ter benefícios de saúde, parecem apresentar maior quantidade de alimentos ultraprocessados, pelo consumo de alternativas à alimentos de origem animal (19).

 

“A orientação para que a população cozinhe mais, embora possa ser vista como nobre, pode não melhorar a qualidade de vida e da dieta. O ato de cozinhar não necessariamente melhora a ingestão de fibras ou nutrientes, aumenta o número de porções de legumes, frutas e vegetais, diminui a ingestão de calorias ou estimula uma maior atividade física” (6).

 

Ao se olhar dados oficiais de obesidade disponibilizados pela OMS (20) e dados de percentual de energia da dieta oriundos de alimentos ultraprocessados (Gráfico 1), observamos que países como Canadá e Estados Unidos, apesar de terem uma maior contribuição de alimentos ultraprocessados na ingestão calórica, apresentam níveis de obesidade semelhantes a países com menor participação relativa destes, como México e Chile. Já no Japão, onde o nível de obesidade é bastante baixo, a participação dos alimentos ultraprocessados na ingestão calórica total é maior do que a observada no Brazil, Chile, França e México – países que apresentam prevalência de obesidade muito maior.

 

Gráfico 1. Prevalência de Obesidade (20) e percentual de contribuição de alimentos ultraprocessados no consumo energético total no Brasil (21), Canadá (22), Chile (23), Estados Unidos (24), França (25), Japão (26) e México (27).

 

Há uma percepção por parte de algumas pessoas de que os alimentos industrializados contribuem com quantidades excessivas de sal e açúcares. Porém, dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2008-2009 indicam que a principal origem de ingestão de sódio pelo brasileiro é o sal de cozinha, representando 71,5% do sódio ingerido no País. Os alimentos industrializados foram responsáveis por 13,8% do total de sódio ingerido pelos brasileiros (28). Situação semelhante é observada com o açúcar, em que 56% do consumo vem do açúcar de mesa usado nos domicílios, e menos de 20% são oriundos do açúcar adicionado aos alimentos industrializados (29).

Este dado parece estar em linha com os resultados de um estudo, que comparou o conteúdo de energia e macronutrientes de 100 refeições prontas vendidas em supermercados com 100 receitas de refeições principais preparadas por chefs de televisão. Os autores observaram que, embora nenhuma das refeições cumpria totalmente as recomendações da OMS, no geral, as receitas continham mais energia, proteína, gordura e gordura saturada e menos fibra do que as refeições prontas (30).

Alimentos preparados na hora não são, portanto, por definição, mais saudáveis do que alimentos processados. Tudo depende da qualidade nutricional das receitas utilizadas.

Diante deste dado, parece que a recomendação de ‘cozinhar’ não parece ser suficiente para garantir uma alimentação equilibrada. É necessário investir em educação nutricional, seja ela para cozinhar ou escolher alimentos.

 

Uso e reconhecimento da do termo ‘alimentos ultraprocessados’

 

A expressão ‘alimentos ultraprocessados’ vem sendo utilizada cada vez mais, desde sua primeira menção em 2009 (7). Até dia 9 de novembro de 2020, 517 menções a esse termo estavam registradas no PubMed.gov (Figura 2).

Vale mencionar, porém, que apesar do aumento da popularidade da expressão, uma parte das publicações são, na verdade, negativas ao uso do termo. Ou seja, parte destas publicações são contrárias à definição e uso do termo ‘ultraprocessado’.

Figura 2. Busca por ‘ultraprocessed foods’ no banco de dados ‘PubMed’. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/?term=ultraprocessed+foods

 

O guia alimentar da população brasileira foi o primeiro documento oficial de um governo a utilizar a expressão ‘alimento ultraprocessado’ (10). Outros países da América Latina também passaram a adotar o termo em seus guias alimentares. Como já mencionado, o guia alimentar do Canada usa a expressão ‘alimentos altamente processado’ que, apesar de semelhante no nome, tem definição bastante diferente da de ‘alimentos ultraprocessados’ (12). Assim, não é possível dizer que o guia alimentar do Canadá utilize a classificação NOVA ou a classificação de alimentos ultraprocessados.

 

Há documentos da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) que utilizam a classificação NOVA e a definição de alimentos ultraprocessados (31) (32). Os autores destes documentos, porém, são os mesmos autores da classificação NOVA (1). A FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) também publicou um documento no qual o sistema de classificação NOVA é apresentado (33), e este documento também tem como autores os mesmos nomes daqueles criadores da classificação NOVA. E neste documento, especificamente, há a menção: “As opiniões expressas neste produto de informação são as do(s) autor(es) e não refletem necessariamente as opiniões ou políticas da FAO, nem constituem uma validação do sistema de classificação NOVA” (33). Com base em tal declaração, não é possível afirmar que a FAO valide ou sugira o uso da classificação NOVA.

O mesmo é válido para a Organização Mundial de Saúde (OMS). Os Estados Membros da OMS estão agrupados em seis regiões, cada uma com um escritório regional (34). Dos 6 escritórios regionais, apenas 1 tem publicações sobre ‘alimentos ultraprocessados’, a OPAS. Sendo assim, é errôneo afirmar que a OMS reconheça ou recomende o uso da classificação NOVA.

 

Orientações para alimentação saudável

 

Diversos padrões alimentares podem ser considerados saudáveis. A composição exata de uma dieta diversificada, equilibrada e saudável varia de acordo com as características individuais (por exemplo, idade, sexo, estilo de vida e grau de atividade física), contexto cultural, alimentos disponíveis localmente e hábitos alimentares (16).

No entanto, os princípios básicos do que constitui uma dieta saudável permanecem os mesmos, de acordo com a OMS (16):

– A ingestão de energia (calorias) deve estar em equilíbrio com o gasto de energia

– A gordura total não deve exceder 30% da ingestão total de energia

– A ingestão de gorduras saturadas deve ser inferior a 10% da ingestão total de energia e a ingestão de gorduras trans inferior a 1% da ingestão total de energia, com uma mudança no consumo de gordura de gorduras saturadas e gorduras trans para gorduras insaturadas

– A ingestão de açúcares livres deve ser limitada a menos de 10% da ingestão total de energia, e uma redução adicional para menos de 5% da ingestão total de energia é sugerida para benefícios adicionais à saúde

– A ingestão de sal deve ser mantida menor de 5 g por dia (equivalente à ingestão de sódio de menos de 2 g por dia)

Para adultos, a OMS indica ainda que uma dieta saudável inclui ainda grãos integrais e 400g (5 porções) de frutas e vegetais por dia (16).

 

A questão a ser respondida, então, é se a quantidade de alimentos processados ​​que um indivíduo consome importa, se este indivíduo cumprir com as recomendações de alimentação saudável da OMS. E até o momento, não há evidências científicas de que isso importe.

 

Referências

  1. Monteiro CA, Cannon G, Levy R, Moubarac JC, Jaime P, Martins APB, Canella D, Louzada ML, ParraD. Food classification. Public health NOVA. The star shines bright. World Nutrition. 2016.
  2. TV Unicamp. https://www.youtube.com/watch?v=jQPaGIuxLIM&feature=youtu.be. Programa Direto na Fonte – ‘Alimento ultraprocessado’ é um termo inadequado, afirma professora. [Online] 20 de Outubro de 2020. https://www.youtube.com/watch?v=jQPaGIuxLIM&feature=youtu.be.
  3. Knorr D, Watzke H. Food Processing at a Crossroad. Front. Nutr. 25 de June de 2019.
  4. Bablo N, Casas-Agustench P, Salas-Salvadó J. Alimentos ultraprocesados. Revisión crtitica, limitaciones del concepto y posible uso en salud pública. 2020.
  5. Fraanje W, Garnett T. What is ultra-processed food? And why do people disagree about its utility as a concept? [A. do livro] University of Oxford. Food Climate Research Network. Foodsource: building blocks. 2019.
  6. J, Jones. How much does homemade mayo differ from store-bought mayo? By Julie Jones. In Defense of Processed Food. [Online] 13 de October de 2020. https://processedfoodsite.com/2020/10/13/how-much-does-homemade-mayo-differ-from-store-bought-mayo-by-julie-jones/.
  7. CA, Monteiro. Nutrition and health. The issue is not food, nor nutrients, so much as processing. Public Health Nutrition. May de 2009, Vol. 12, 5, pp. 729-731.
  8. Monteiro CA, Cannon G, Levy RB, Claro RM, Moubarac J-C. The Food System. Ultra-processing. The big issue for nutrition, disease, health, well-being. [Commentary]. World Nutrition December. 2012, pp. 527-569.
  9. Monteiro CA, Cannon G, Levy RB, Moubarac J-C, Louzada MLC, Rauber F et al. Ultra-processed foods: what they are and how to identify them [Commentary]. Public Health Nutrition. 2019.
  10. Brasil. Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população brasileira. Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde. Brasília : s.n., 2014.
  11. Petrus RR, Sobral PJdoA, Tadini CC, Gonçalves CB. O sistema de classificação NOVA sob o prisma da Engenharia e Ciência de Alimentos. . FORC – Food Research Center. [Online] 2020. http://forc.webhostusp.sti.usp.br/noticia.php?noticia=90 .
  12. Health Canada. Canada’s Dietary Guidelines – for Health Professionals and Policy Makers. Minister of Health. Ottawa : s.n., 2019.
  13. Agencia Española Seguridad alimentaria y Nutrición (AESAN). Informe del Comité Científico de la Agencia Española de Seguridad Alimentaria y Nutrición (AESAN) sobre el impacto del consumo de alimentos “ultra-procesados” en la salud de los consumidores. 2 de Junio de 2020. Revista del Comité Científico Nº 31.
  14. JM, Jones. Food processing: criteria for dietary guidance and public health? 2018.
  15. Desrotulando. App Desrotulando.
  16. World Health Organization (WHO). Healthy diet. [Online] 2020. https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/healthy-diet.
  17. Monteiro CA, Levy RB, Claro RM, Castro IRRdeC, Cannon G. IIncreasing consumption of ultra-processed foods and likely impact on human health: evidence from Brazil. Public Health Nutrition. 2010.
  18. Louzada MLdaC, Martins AP, Canella DS, Baraldi LG, Levy RB, Claro RM, Moubarac JC, Cannor G, Monteiro CA. Ultra-processed foods and the nutritional dietary profile in Brazil. Rev Saude Publica. 2015.
  19. Gibney, Michael J. Food Technology and Plant-Based Diets. ASN. 2020.
  20. World Health Organization. Prevalence of obesity among adults, BMI >= 30 (age-standardized estimate) (%). The Global health Observatory. [Online] 2020. https://www.who.int/data/gho/data/indicators/indicator-details/GHO/prevalence-of-obesity-among-adults-bmi-=-30-(age-standardized-estimate)-(-).
  21. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de orçamentos familiares: 2017-2018: análise do consumo alimentar pessoal no Brasil. Diretoria de Pesquisas. 2020.
  22. Betal M, Johnson-Down L, Moubarac J-C, Ing A et al. Quantifying associations of the dietary share of ultra-processed foods with overall diet quality in First Nations peoples in the Canadian provinces of British Columbia, Alberta, Manitoba and Ontario. Public Health Nutrition. 2017.
  23. Cediel G, Reyes M, Corvalan C, Levy RB, Uauy R, Monteiro CA. Ultra-processed foods drive to unhealthy diets: evidence from Chile. Public Health Nutrition. 2019.
  24. Steele EM, Baraldi LG, Louzada MLdaC, Moubarac J-C, Mozaffarian D, Monteiro CA. Ultra-processed foods and added sugars in the US diet: evidence from a nationally representative cross-sectional study. BMJ. 2016.
  25. Julia C, Martinez L, Alles B, Touvier M, Hercberg S, Mejean C, Kesse-Guyot E. Contribution of ultra-processed foods in the diet of adults from the French NutriNet-Santé study. Public Health Nutr. 2017.
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  27. Marron-Ponce JA, Sanchez-Pimienta TG, Louzada MLdaC, Batis C. Energy contribution of NOVA food groups and sociodemographic determinants of ultra-processed food consumption in the Mexican population. Public Health Nutr. 2017.
  28. Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (ABIA). Cenário do consumo de sódio no Brasil. Estudo baseado em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 2015.
  29. Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação. Cenário do consumo de açúcar no Brasil. Estudo baseado em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 2015.
  30. Howard S, Adams J, and White M. Nutritional content of supermarket ready meals and recipes by television chefs in the United Kingdom: cross sectional study. 2012.
  31. Pan American Health Organization (PAHO). Ultra-processed food and drink products in Latin America: Trends, impact on obesity, policy implications. . Washington, DC : s.n., 2015.
  32. Pan American Health Organization. Ultra-processed food and drink products in Latin America: Sales, sources, nutrient profiles, and policy implications. Washington, D.C. : s.n., 2019.
  33. Monteiro CA, Cannon G, Lawrence M, Costa Louzada ML and Pereira Machado P. Ultra-processed foods, diet quality, and health using the NOVA classification system. Rome : FAO, 2019.
  34. World Health Organization (WHO). WHO regional offices. [Online] 2020. https://www.who.int/about/who-we-are/regional-offices.

 

Autora:

Fernanda de Oliveira Martins

CRN-3: 23.854

  • Bióloga formada pela USP-RP
  • Nutricionista formada pela USP-SP.
  • Mestre em Saúde Pública pela USP-SP
  • Pós-graduada em Laboratório de Saúde Pública pela USP-SP
  • Pós-graduada em Gestão de Negócios com ênfase em Marketing pela ESPM
  • Pós-graduada em Marketing de Alimentos em Âmbito internacional pela CESMA, Madri – Espanha

“Trabalho há mais de 10 anos em indústria de alimentos, e me orgulho de poder, dentro da indústria, trabalhar com meu propósito de vida: Difundir mensagens fáceis, porém verdadeiras, empoderando pessoas a tomarem decisões de vida mais saudáveis.”

Este texto é opinião pessoal e independente da autora, sem qualquer relação com sua empresa empregadora.


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