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E assim evolui a Engenharia de Alimentos

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1. Introdução

A Indústria de Alimentos é continuamente pressionada a responder com celeridade às demandas do mercado, cuja exigência é notoriamente crescente. O perfil do consumidor tem sofrido alterações bastante expressivas nas últimas décadas, podendo-se enumerar uma série extensa de expectativas que dele emana. Além da segurança (microbiológica, química e física) e da qualidade nutricional, sensorial e funcional do alimento processado em escala industrial, emergem-se múltiplos requisitos, a mencionar: 1) preservação em níveis máximos dos atributos da matéria-prima que originou o produto acabado, 2) redução ou eliminação de intervenções químicas na composição original do alimento, 3) transparência, no tocante a origem da matéria-prima e tecnologias de processamento, 4) rastreabilidade e 5) sustentabilidade, especialmente no que tange à preservação de recursos naturais e respeito ao meio ambiente. Neste cenário, os avanços no processamento de alimentos são imperativos para se alcançar a devida eficiência industrial e a satisfação do consumidor. Apesar dos atributos sensoriais e nutricionais serem decisivos para aceitação comercial do produto alimentício, a sua segurança é – e permanecerá sendo – o compromisso prioritário na produção industrial de alimentos.

 

2. Trajetória evolutiva

Na virada do século XVIII para o século XIX, a Europa atravessava um período de turbulência bélica. Durante as guerras Napoleônicas, a França sofria mais baixas nas suas tropas decorrentes da desnutrição e intoxicação alimentar, comparado às próprias investidas na frente de batalha. No final do século XVIII, Napoleão ofereceu um prêmio de 12.000 francos àquele que desenvolvesse um método eficiente de conservação de alimentos. Em 1810, um criativo confeiteiro francês chamado Nicolas Appert foi agraciado com o prêmio ofertado pelo governo francês. Em seu manual, publicado no mesmo ano, Appert reportou que ao ser aquecido em um recipiente hermeticamente selado, os alimentos poderiam ser conservados. Appert acreditava que o ar, por si próprio, era a causa de deterioração. Apesar de ter conduzido seu experimento com recipientes de vidro, Appert conquistou grande notoriedade como “the father of canning”. Em 1862, o brilhante cientista Louis Pasteur demonstrou que a fermentação provocada pelo desenvolvimento microbiano era de fato a causa-chave da deterioração dos alimentos, conduzindo ensaios experimentais com leite, vinho e cerveja, representando assim um importantíssimo avanço para o processamento de alimentos.

Cruzando o Atlântico, nos Estados Unidos, o cientista Bigelow incrementou sobremaneira o conhecimento tangível ao processamento térmico de alimentos, postulando, em 1920-21, que os esporos microbianos eram mais rapidamente destruídos a temperaturas mais elevadas; que a curva de morte térmica exibia um comportamento logarítmico, além de demonstrar a influência da acidez na intensidade do tratamento térmico requerido para a estabilização do alimento. Nos anos de 1923 a 1927, Bigelow e Ball propuseram cálculos para o delineamento dos parâmetros de processamento térmico. Paralelamente, em 1922, Esty e Meyer estabeleceram o conceito 12D para destruição de esporos de Clostridium botulinum. Em 1965, Stumbo publicou uma obra científica intitulada “Termobacteriologia no processamento de alimentos”, um marco para o avanço da ciência do processamento térmico.

A Ciência de Alimentos, entretanto, já se preocupava com eventuais danos colaterais deflagrados pelo uso do calor. Este fato motivou o estudo de tecnologias alternativas, a exemplo de altas pressões (1899), e do sistema de processamento e acondicionamento asséptico, na primeira década do século XX. Contudo, a sua aplicação alcançou a projeção comercial, várias décadas após a concepção de seus princípios. O surgimento do sistema de processamento e envase asséptico desenvolvido pela companhia sueca Tetra Pak, nos anos de 1948-50, representou um avanço extraordinário à luz do processamento de alimentos, permitindo que o alimento fosse processado separadamente da embalagem que o acondicionava, preservando substancialmente a sua qualidade sensorial e nutricional.

Nas décadas subsequentes intensificaram-se as investigações científicas acerca da aplicação de métodos de processamento não térmicos, a exemplo de altas pressões hidrostáticas, campo elétrico pulsado, ultrassom, ozônio, irradiação, separação por membranas de micro e ultrafiltração, campos magnéticos de alta densidade, dióxido de carbono em estado supercrítico, luz pulsada, tratamento fotodinâmico, plasma a frio, dentre outras. Paralelamente, outras tecnologias térmicas alternativas emergiram como aquecimento ôhmico e micro-ondas. Evidenciam-se, por conseguinte, os avanços nas tecnologias de processamento visando a otimização da segurança, da qualidade sensorial e nutricional dos alimentos processados, e extensão do seu tempo de vida útil. Mas, foi a partir da década de 1990 que as tecnologias alternativas foram disseminadas em escala comercial. Outro fato marcante que contribuiu extensivamente para o avanço das tecnologias de processamento foi a proposição do conceito de obstáculos – métodos combinados ou tecnologia de barreiras– pelo cientista Leistner, no início da década de 1970. Demonstrou-se que a combinação de fatores intrínsecos e extrínsecos exercia um efeito favorável à inibição e/ou destruição de micro-organismos deteriorantes e potencialmente patogênicos.

Mais recentemente, um movimento criado no seio do mercado consumidor deu origem ao conceito “clean label”, que propõe a eliminação do emprego de ingredientes artificiais e aditivos sintéticos aos alimentos. Nesta corrente, o consumidor almeja uma maior familiarização com os rótulos dos alimentos. Esta demanda do mercado inevitavelmente impacta a escolha das tecnologias de processamento impulsionando o seu aprimoramento.

Um evento a ser destacado é a disseminação do emprego de ferramentas estatísticas visando a otimização de parâmetros de produção industrial de alimentos, que tem ampliado a eficiência dos processos e reduzindo custos de produção. Métodos de processamento baseado em técnicas de “tentativa e erro”, cedem espaço para robustas abordagens estatísticas.

Outro movimento curioso recente, em âmbito industrial, foi o surgimento da Indústria 4.0, também chamada da 4ª Revolução Industrial. Este modelo de gestão holística e dinâmica pretende atender o mercado em todos os seus processos, com o potencial de promoção de grandes avanços no processamento de alimentos, por meio da automação e robotização. A construção de plantas de processamento “inteligentes”, baseadas em alto fluxo de informação, infraestrutura digital robusta, banda larga, rede móvel ilimitada, dispositivos inteligentes, robotização no desempenho de operações unitárias complexas, “big data”, “internet of things” e “data science” já são uma realidade em muitos países. Isto permitirá a completa integração entre todos os elos da cadeia produtiva e serão ferramentas preciosas para o avanço tecnológico no processamento de alimentos.

O desenvolvimento das tecnologias de sistemas de embalagem é mais um exemplo a ser sublinhado, crucial para o transporte do produto no espaço e no tempo. Os avanços em processamento devem ser sincronizados com a tecnologia de embalagem, como se observa no sistema asséptico que alcançou grande sucesso mundial. Embalagens assépticas, ativas, inteligentes, biodegradáveis, e até comestíveis, ocupam uma posição de destaque neste cenário, atuando como aliadas das tecnologias de processamento.

 

3. Considerações finais

A Engenharia de Alimentos persiste em sua busca incansável para garantir a satisfação e até mesmo superar as expectativas do consumidor no que refere a segurança, qualidade funcional, nutricional, vida de prateleira e diversificação de produtos. Neste contexto, a combinação de tecnologias convencionais/clássicas e alternativas representa uma estratégia determinante para sustentar e catalisar os avanços no processamento de alimentos. Como proclama a European Technology Platform – Food for Life, as tecnologias de processamento devem ser continuamente adaptadas, compatibilizadas com o produto, e, sobretudo alinhadas com as preferências e necessidades do consumidor. Para se lograr este objetivo, as técnicas de processamento de alimentos demandam sólido domínio e aplicação de Engenharia de Processos. Esta área de conhecimento é fundamental para o entendimento dos fenômenos termodinâmicos básicos que norteiam as diversas operações unitárias utilizadas neste setor. Esta compreensão é fundamental para a otimização dos processos de forma sistemática e de menor custo do que a utilização de abordagens baseadas em tentativa e erro (cook n’ look technologies).

 

4. Bibliografia

APPERT, N. L'art de conserver, pendant plusieurs années, toutes les substances animales et végétales. Paris, 1810.
ESTY, J. R.; MEYER, K. F. The heat resistance of the spores of B botulinus and allied anaerobes XI. Journal of Infectious Diseases, v. 31, p. 650-663, 1922.
FEATHERSTONE, S. A review of development in and challenges of thermal processing over the past 200 years – A tribute to Nicolas Appert. Food Research International, v. 47, n. 2, p. 156-160, Jul 2012.
PASTEUR, L. Physiological theory of fermentation. Disponível em: www.pasteurbrewing.com/physiological-theory-of-fermentation/Acesso em: 04 ago. 2022.
STUMBO, C. Thermobacteriology in Food Processing. 2 nd ed. Academic Pres, 1973.

 

Sobre os autores

 

Alfredo de Almeida Vitali

Fundador e Consultor da Black Box Openers.

 

 

Rodrigo Rodrigues Petrus

Professor Associado do Departamento de Engenharia de Alimentos da FZEA/USP.

 


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